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EditorialMaio-Junho 2017 | Volume 46 — Número 3
Doença Crónica: Intervenção do Médico de Família para Limitar as suas Repercussões na Pessoa e na Família
Teresa Ventura* Constatamos que quadros clínicos idênticos afetam pessoas diferentes de modo desigual, o que resulta em relatos de sintomas e incapacidades distintos, bem como em respostas à terapêutica e evoluções da doença heterogéneas. Estas discrepâncias entre casos evidenciam a importância das variáveis psicossociais. Entre estas variáveis, a família é especialmente importante. Se um dos seus membros adoece cronicamente, a família soma o cuidar na doença a outras funções idênticas às das famílias com elementos saudáveis.(1) Submetida, assim, a exigências elevadas, os seus mecanismos homeostáticos habituais não resolvem o stress, sendo a família pressionada a mobilizar mecanismos que não pertencem ao seu repertório usual. As respostas encontradas para a situação de doença podem ser eficazes, provocando mudanças adequadas e minimizando o stress; ou podem falhar, por as exigências ultrapassarem os recursos de que a família dispõe, o que leva a um impasse, à disfunção ou mesmo à disrupção do sistema familiar.(2) Se a doença crónica (DC) gera ou agrava disfunção na família, esta pode ser assim tipificada: a DC tem um papel dominante e outras necessidades são negligenciadas; um familiar relaciona-se de forma exclusivista com o doente, deixando os restantes familiares de fora; o comportamento da família torna-se rígido, dificultando a evolução através dos diversos estádios do ciclo de vida, a expressão de sentimentos e a relação com os outros, com frequente intensificação de conflitos antigos; a família isola-se.(3,4) Quando a adaptação à DC é disfuncional, o doente pode reforçar sintomas e outros membros da família podem tornar-se sintomáticos.(2,4) A tese de doutoramento “Doença Crónica: Intervenção do Médico de Família para Limitar as suas Repercussões na Pessoa e na Família”(4) identifica as repercussões da DC na pessoa e na família e os fatores condicionantes da adaptação à DC, ou seja, que estão subjacentes ao rumo e à expressividade que as repercussões da DC poderão assumir. Sistematiza, ainda, as intervenções do médico de família para limitar os efeitos da DC, promover a autonomia do doente e evitar o emergir ou o agravar de disfunções familiares. Os resultados da investigação enraízam-se nos dados de 132 estudos de caso, a partir dos quais se construiu teoria, utilizando uma lógica indutiva, ou seja, partindo do particular para o geral. Com variações consoante os casos, a DC tem como possíveis repercussões: necessidade de integrar no quotidiano as exigências da DC; alterações dos estilos de vida; necessidade de aquisição de conhecimentos e aptidões relacionados com a DC; necessidade de conhecer e adaptar-se às normas do(s) serviço(s) de saúde e de estabelecer relações eficazes com os profissionais de saúde; convívio com a incerteza; necessidade de lidar com o abandono, o adiamento ou a reformulação de projetos pessoais; necessidade de atribuir um significado à DC e de ressignificar a identidade e a existência; exigências emocionais e afetivas; efeitos na sexualidade; mudança de localização/tipologia familiar; alterações no funcionamento da família; mudanças no apoio social; sobrecarga familiar e aumento da morbilidade dos cuidadores; problemas financeiros; alterações laborais/escolares; dificuldades no lazer; alterações na vivência do tempo; alterações no uso do espaço físico; e aumento da comorbilidade.(4) A adaptação à DC é condicionada por 26 fatores: tipo de DC; fase da história natural da DC; caraterísticas do tratamento; grau de controlo dos sintomas e da doença; interinfluência de doenças coexistentes; interface da DC com o ambiente físico (doméstico e urbanístico); humanização dos serviços de saúde; proximidade dos serviços de saúde; modo de vida anterior ao adoecer; antecedentes biográficos; papel do doente na família; estádio do ciclo de vida familiar; funcionamento da família prévio ao adoecer; experiência anterior da família em situações de crises; coocorrência de outros eventos stressores; personalidade; crenças e religião/espiritualidade; reações emocionais; gratificações decorrentes do papel de doente; coping face à DC; suporte social; recursos financeiros; informação sobre a DC; políticas sociais e de família; e cultura e subculturas da sociedade. Variáveis demográficas, bem como o tempo histórico, poderão manifestar-se de modo entrelaçado com os fatores condicionantes da adaptação à DC, modulando a sua expressividade.(4) As intervenções médicas promotoras de uma boa adaptação à DC incidem nos fatores condicionantes da adaptação à DC desfavoráveis e devem ser atempadas,(4) pois são mais eficazes no início da DC, quando a família procura um modo novo de funcionar, comparativamente às intervenções só remediativas que ocorrem quando a disfunção já está instalada e cristalizada. Estas intervenções sistematizam-se em 15 tipologias: controlo dos sintomas/evolução da DC; deteção oportunística de situações a necessitar de intervenção; vigilância/tratamento de psicopatologia coexistente; promoção de hábitos salutogénicos; referenciação, provedoria do doente, articulação entre prestadores de cuidados; suporte à gestão do autocuidado; suporte psicossocial; modificação de riscos biopsicossociais da família; mudança de crenças; incentivo aos contactos sociais; mobilização de recursos familiares/outros recursos informais; ensino de alternativas para realizar tarefas/adaptação da casa/ajudas técnicas; informação sobre a DC; informação sobre serviços de saúde, promoção da sua humanização; e intervenção comunitária. Os conteúdos globais do estudo não necessitarão de ser mobilizados na sua totalidade em todos os casos, constituindo antes um cardápio, a partir do qual o médico selecionará o que se lhe afigurar mais útil, tendo em atenção as caraterísticas de cada caso concreto e a gestão que faz das oportunidades de modificar os riscos psicossociais.(4) Pelo exposto, as DC exigem um olhar holístico, que necessita de ser cultivado, pois, como observam Minuchin e Fishman, é difícil “olhar para além do indivíduo” na cultura ocidental, impregnada por um paradigma de autodeterminação individual.(5) As experiências e as evidências que nos colocam frente a frente com os limites desse paradigma, contribuirão para mudá-lo.(6) Referências bibliográficas 1. Rolland JS. Chronic illness and the life cycle: A conceptual framework. Fam Proc. 1987;26:203-21. 2. Augusto MJ. Crises Familiares. Sampaio D, Resina T (Ed). Família: Saúde e Doença. Lisboa: Instituto de Clínica Geral da Zona Sul; 1994. pp. 37-47. 3. Gonzalez S, Steinglass P, Reiss D. Putting the illness in its place: Discussion groups for families with chronic medical illness. Fam Proc. 1989;28:69.87. 4. Ventura T. Doença Crónica: Intervenção do Médico de Família para Limitar as suas Repercussões na Pessoa e na Família. Lisboa: Nova Medical School|Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; 2016. 349f. Tese de Doutoramento. 5. Minuchin S, Fishman HC. Técnicas de Terapia Familiar. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990. 6. Vasconcellos MJE. Pensamento Sistêmico: O novo paradigma da ciência. 3th ed. São Paulo: Papirus; 2002. *Docente da Nova Medical School|Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; Assistente Graduada Sénior da Unidade de Saúde Familiar Santo Condestável, Lisboa” |