EditorialDezembro 2015 | Volume 44 — Número 5
A discussão sobre o rastreio do cancro do pulmão que devíamos começar
Bruno Heleno*, David Rodrigues** O presente número da edição portuguesa da Postgraduate Medicine tem um artigo que revê recomendações americanas sobre rastreio, diagnóstico, tratamento e vigilância de cancro do pulmão. A propósito do rastreio, confrontam-se as posições de duas sociedades americanas. A US Preventive Services Task Force (USPSTF) recomenda o rastreio com TAC de baixa dose(1) e a American Academy of Family Physicians conclui que a prova científica é insuficiente para recomendar a favor ou contra.(2) Neste editorial, argumentamos que é altura de começar a discutir em que condições deve Portugal avançar com um programa de rastreio do cancro do pulmão. Os benefícios do rastreio do cancro do pulmão Em 2011 foram publicados os resultados do National Lung Screening Trial,(3) um ensaio clínico americano que aleatorizou 26.722 fumadores e ex-fumadores para rastreio do cancro do pulmão com TAC de baixa dose e 26.732 fumadores e ex-fumadores para rastreio com RX do tórax. Ao fim de 6 anos e meio de seguimento, este ensaio encontrou uma redução de 20% da mortalidade de cancro do pulmão (correspondendo a uma redução de 3 mortes do cancro do pulmão por cada 1.000 pessoas rastreadas ou, se preferirem, a um número necessário para rastrear de 308) e uma redução de 6,7% da mortalidade por todas as causas (correspondendo a uma redução de 4 mortes por cada 1.000 pessoas rastreadas ou, se preferirem a um número necessário para rastrear de 222). Estes resultados causaram furor na comunidade científica, já que foi o primeiro programa de rastreio a demonstrar uma redução da mortalidade global. Várias sociedades científicas americanas passaram a recomendar a adoção do rastreio do cancro do pulmão entre 2012 e 2015,(4-7) apesar de estarem em curso outros 6 ensaios clínicos sobre a eficácia do rastreio do cancro do pulmão com TAC de baixa dosagem. A grande razão é que o National Lung Screening Trial era o ensaio clínico com maior número de participantes e um dos melhores desenhados. Os malefícios do rastreio do cancro do pulmão Os malefícios associados a programas de rastreio podem dividir-se em efeitos físicos, psicológicos, económicos e custos de oportunidade.(8) Estes malefícios podem surgir por diferentes mecanismos, mas os dois mais importantes são os falsos-positivos e o sobrediagnóstico de cancro. Por falsos-positivos, entendem-se todos os resultados positivos no exame de rastreio nos quais não se confirma a suspeita de cancro na investigação diagnóstica subsequente. Por sobrediagnóstico, entende-se a deteção de cancros que não progrediriam para sintomas durante a restante esperança de vida do indivíduo rastreado (Para uma explicação detalhada e de acesso livre das razões que levam ao sobrediagnóstico de cancro, recomenda-se a leitura do artigo de Welch e Black publicado em 2010).(9) O National Lung Screening Study forneceu muita informação relevante sobre malefícios do rastreio, mas uma vez que comparou duas formas alternativas de rastreio (TAC de baixa dosagem e RX do tórax), as estimativas dos malefícios serão sempre inferiores àquelas que teriam sido obtidas se fosse comparado rastreio com TAC de baixa dosagem e nenhuma forma de rastreio. Por isso, teremos que esperar pelos resultados dos restantes ensaios clínicos sobre rastreio com TAC de baixa dosagem para sabermos a magnitude dos malefícios do rastreio. Apesar das limitações, o National Lung Screening Trial ainda é a melhor prova científica disponível. Em cada 1.000 indivíduos a quem foi oferecido rastreio com TAC de baixa dose 367 tiveram pelo menos um falso-positivo.(3) Após 3 ciclos anuais de rastreio com TAC de baixa dose, 6 em cada 1000 pessoas rastreadas tiveram uma complicação durante a marcha diagnóstica (e 3 foram complicações major).(3) Neste ensaio, verificou-se também que o número de cancros do pulmão no grupo rastreado com TAC de baixa dose (1.060 em 26.722 participantes) excedia o número de cancros do pulmão no grupo rastreado com RX do tórax (941 em 26.732 participantes).(10) Este aumento de 4 cancros por cada 1.000 pessoas rastreadas é altamente sugestivo que o rastreio com TAC de baixa dose leva ao sobrediagnóstico de cancro do pulmão. Dito de outra forma, em cada 1.000 pessoas rastreadas no National Lung Screening Trial pelo menos quatro pessoas foram tratadas desnecessariamente com cirurgia, radioterapia e quimioterapia. Da prova científica à prática clínica A história da implementação de programas de rastreio diz-nos que é mais fácil, mais efetivo, mais eficiente e mais equitativo implementar de raiz um programa de rastreio organizado do que procurar organizar vários projetos que surgem espontaneamente enquanto se espera por uma decisão central.(11) Nos próximos 2-3 anos serão publicados os resultados finais dos restantes ensaios clínicos sobre rastreio do cancro do pulmão.(12-14) Por essa altura, seria bom termos uma resposta a se Portugal deve avançar com um programa de rastreio do cancro do pulmão. Há vários passos intermédios que podemos já preparar. Rever a prova científica Este será o passo mais simples, porque será relativamente fácil transferir o resultado de revisões sistemáticas estrangeiras para a realidade nacional. A colaboração Cochrane tem já uma revisão sistemática de alta qualidade sobre o efeito das diferentes modalidades de rastreio do cancro do pulmão.(15) Esta revisão será atualizada assim que sejam publicados os resultados finais de todos os ensaios clínicos sobre rastreio com TAC de baixa dose. Logo, não será necessário utilizar recursos nacionais para fazer esta avaliação. Decidir como se comparam os benefícios e malefícios a nível populacional Se os resultados do National Lung Screening Study forem confirmados, ficaremos a saber que o rastreio com TAC de baixa dose reduz a mortalidade por cancro, aumenta a incidência de cancro (à custa do sobrediagnóstico) e leva a que uma fração significativa da população rastreada tenha pelo menos um falso-positivo. A grande questão é saber se uma redução de 4 mortes “justifica” tratarmos desnecessariamente 4 pessoas por um cancro sobrediagnosticado e lidarmos com as 367 pessoas que tiveram um falso positivo. Esta é uma avaliação muito subjetiva, que envolve dois eventos graves mas raros (morte evitável por cancro do pulmão, cancro sobrediagnosticado) e um evento que habitualmente é ligeiro mas muito frequente (os falsos-positivos). Em Portugal, o “Grupo de Trabalho para o Cancro do Pulmão” produziu, em 2009, uma recomendação negativa sobre rastreio com TAC de baixa dose.(16) Agora, após a publicação do NLST e dos demais ensaios clínicos, seria desejável rever esta recomendação. Idealmente, uma decisão a aplicar-se a todos os portugueses deveria envolver não só profissionais de saúde, mas representantes dos potenciais participantes neste rastreio, eticistas e epidemiologistas. Quanto mais inclusivo for o processo de elaboração das recomendações nacionais, maior a possibilidade da população alvo e dos clínicos se reverem nestas normas. Caso os benefícios sejam superior aos riscos, avaliar se os benefícios justificam os recursos necessários A implementação de um programa de rastreio de cancro do pulmão, implicará a aquisição de mais aparelhos de TAC, a contratação de médicos radiologistas, técnicos de imagiologia e pessoal de apoio administrativo, sobrecarga dos serviços responsáveis por fazer a investigação dos resultados anormais no rastreio, aumento do número de utentes referenciados para os serviços hospitalares envolvidos no tratamento do cancro do pulmão, etc. Os economistas da saúde podem avaliar quais seriam os custos diretos e indiretos da implementação do rastreio do cancro do pulmão em Portugal. Agora, o que é importante relembrar é que todos os recursos que forem utilizados para implementar o rastreio do cancro do pulmão serão recursos que não estarão disponíveis para outras atividades, por exemplo, fomentar a cessação tabágica, que é um gesto de prevenção primária não só do cancro do pulmão mas também de doenças cardiovasculares. O papel dos médicos de família no rastreio do cancro do pulmão Os médicos de família são o primeiro contacto com o sistema nacional de saúde. Caso seja implementado um programa nacional de rastreio do cancro do pulmão, será lógico que a identificação dos participantes se baseie nos hábitos tabágicos registados pelos médicos de família nos processos clínicos dos seus utentes. No entanto, o papel fulcral dos médicos de família será na facilitação de decisões centradas na pessoa. As recomendações nacionais serão sempre dirigidas para um “português médio” que não existe na prática clínica. Cada um dos utentes desviar-se-á em maior ou menor grau deste “português médio”, quer nos fatores de risco para morte por cancro do pulmão, quer na forma como valoriza diferentes consequências do rastreio. Caberá ao médico de família informar adequadamente os seus utentes sobre os benefícios e malefícios e com eles partilhar a decisão relativa ao rastreio. Mesmo que não haja uma recomendação nacional, os médicos de família terão que lidar com as consequências de “rastreios” não organizados. A tecnologia está disponível em Portugal e já aparece como oferta em planos de avaliação periódica de saúde (vulgo “check-ups”). Os médicos de família terão também que decidir quanto tempo será aplicado para o rastreio do cancro do pulmão, sabendo que esse tempo deixará de estar disponível para fazer cessação tabágica ou outras atividades que são relevantes para o utente. Conclusão O rastreio do cancro do pulmão com TAC de baixa dosagem é a mais promissora forma de prevenção secundária em estudo. Se os ensaios clínicos em curso confirmarem a redução de mortalidade observada no National Lung Screening Study, Portugal terá que reavaliar se os benefícios do rastreio são superiores aos malefícios e se dispõe dos recursos necessários à sua implementação. Seria desejável que esta discussão fosse transparente e incluísse representantes dos utentes, profissionais de saúde e especialistas em bioética. Isso facilitaria a adoção de recomendações nacionais e serviria para guiar a prática dos médicos de família na sua consulta. *Médico de família, Unidade Curricular de Medicina Geral e Familiar, NOVA Medical School|Faculdade de Ciências Médicas, Campo dos Mártires da Pátria, 130, 1169-056 Lisboa, Portugal **CEDOC, Chronic Diseases Research Centre, NOVA Medical School|Faculdade de Ciências Médicas, Universidade NOVA de Lisboa, Campo dos Mártires da Pátria, 130, 1169-056 Lisboa, Portugal Referências bibliográficas 1. Moyer VA, U.S. Preventive Services Task Force. 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