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EditorialJaneiro-Fevereiro 2017 | Volume 46 — Número 1
Não me pode receitar um antibiótico para a gripe?
Edmundo Bragança de Sá No pico da gripe deste ano, o Sr. João de 45 anos, vendedor de profissão, veio ao Serviço de Urgência Básica onde eu estava escalado com queixas de calafrios, mialgias, febre, coriza e tosse seca. Após a observação, expliquei ao Sr. João que era provável que fosse um caso de gripe e que deveria fazer paracetamol, reforço de líquidos (gosto de recomendar o chá de limão com mel ou o chá de poejos), repouso e aconselhei medidas básicas para evitar a propagação do vírus. O Sr. João esteve atento e pareceu-me anuir a tudo quanto lhe disse e praticamente não me interrompeu. Quando estava a dar por terminada a consulta o Sr. João perguntou: então não me receita mais nada? É que sem um antibiótico não vou melhorar. No ano passado só com o antibiótico é que fiquei melhor e eu tenho que ficar bom rapidamente pois os clientes não podem esperar… O Sr. João é um dos mais de 50% dos portugueses que pensam que os antibióticos atuam sobre os vírus e que acreditam que servem para tratar constipações e a gripe. A utilização excessiva e muitas vezes desadequada dos antibióticos leva ao desenvolvimento de estirpes de bactérias (“super-bactérias”) que se tornam resistentes à sua ação. A Dra. Margaret Chan (Diretora Geral da Organização Mundial de Saúde) referiu que o aumento da resistência aos antibióticos atinge níveis perigosamente elevados em todas as partes do mundo. De facto, estima-se que, se nada for feito, para o ano 2050 morrerão anualmente cerca de 390 mil pessoas na Europa e 10 milhões de pessoas em todo o mundo em consequência direta das resistências aos antibióticos. Esta preocupação crescente pelo aumento da resistência aos antibióticos à escala mundial tem estado na base das comemorações da “Semana Mundial dos Antibióticos” (de 14 a 18 de Novembro) e do “Dia Europeu dos Antibióticos” (18 de Novembro) e visam promover uma utilização adequada dos antibióticos e informar os doentes acerca dos riscos da automedicação com estes fármacos. Dado que cerca de 80 a 90% dos antibióticos são utilizados no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, os médicos de família têm um papel particularmente importante na sua prescrição racional e na sensibilização dos utentes para a sua utilização correta e responsável, em particular evitando a automedicação ou o recurso a antibióticos que sobraram de prescrições anteriores. Os médicos de família têm ainda uma responsabilidade acrescida resultante da gestão de toda a medicação e do conhecimento que detêm das múltiplas patologias de cada utente. Como poderão ler no simpósio deste mês, os antibióticos constituem a principal causa de lesão hepática induzida por drogas. Para além disso, o artigo sobre interações com antibióticos chama a atenção para os riscos da prescrição de certas classes de antibióticos em utentes a fazer anticoagulação oral, contracetivos hormonais ou com risco de torsade de pointes. Em Portugal, as várias campanhas que nos últimos anos têm sido feitas, e em particular as normas da Direção Geral da Saúde e o Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), levaram a uma redução de 4% no consumo de antibióticos entre Outubro de 2015 e Setembro de 2016 ficando esse consumo abaixo da média europeia. Mesmo assim, a venda de embalagens de antibióticos neste período de tempo foi de 8,5 milhões (quase 1 embalagem por cada português). Algumas iniciativas que têm sido feitas no sentido de reduzir a prescrição não justificada de antibióticos incluem a emanação de normas e orientações de utilização de antibióticos, o desenvolvimento e promoção do uso facilitado de testes de diagnóstico microbiológico rápido e a criação de estruturas e metodologias de consultadoria em terapêutica antibiótica nas unidades de saúde. Resta-nos a esperança que num futuro próximo os utentes deixem de pressionar os médicos para práticas menos corretas e os médicos consigam contrariar com mais êxito essas práticas. |