Editorial«Troika» por gente formada
Prof. Mário Bernardo Cheguei a Lisboa, vindo de uma guerra que não era minha, num dia quente de julho de 1969 e, na noite a seguir, chegaram à terra os astronautas regressados da primeira viagem à lua e eu, que vinha de muito mais perto, demorei mais tempo a chegar porque o velho petroleiro que me transportou se avariou durante uma tempestade a dobrar o cabo das tormentas (porque será que as nossas vidas estão tão cheias de cabos das nossas tormentas?) e daí até Lisboa demorei mais tempo do que o próprio Vasco da Gama quando lá passou e depois, quando já estava no cais, vi que o meu filho tinha crescido muito durante a minha ausência e logo, quase em seguida, voltei para a faculdade, para ser assistente de anatomia, e foi então que conheci o José Guilherme Jordão, que ia ser meu monitor, e o Mário Botas, que ia ser meu aluno nesse meu primeiro ano letivo, e foi um bom ano porque eu, sendo assistente, assistia, o José Guilherme Jordão, sendo monitor, monitorizava e o Mário Botas, como era aluno, alunava, ou seja, sempre com uma voz calma e um sorriso tranquilo, e tranquilizador, passava as aulas a desenhar, num diálogo com uma figura que ele já via no papel mesmo antes que nós a descortinássemos e, no fim, ficávamos todos encantados com a sua magia diante da imagem final e, por outro lado, o José Guilherme Jordão logo nos evidenciou como a sua vida iria ser um sucesso ao estar apoiado numa inteligência invulgar, numa notável capacidade de trabalho, num trato afável e numa delicadeza notória que a todos encantava e eu logo saltava na garupa do cavalinho do tempo, tendo nas mãos a rédea da imaginação e pensava estar feliz e contente com a convivência com ambos e até sonhava que um dia, já velho, eles seriam nos seus caminhos pessoas realizadas e profissionais ilustres e me iriam visitar para falar desses tempos dos desenhos, de trabalhos e de projetos e logo depois, sonhos desfeitos ao nascer, tudo se começou a desmoronar quando um e outro, em datas diferentes, viram as vidas em risco com ameaças parecidas e, primeiro a partir foi o Mário Botas, menino ainda, com trinta anos que viveu e com outros trinta já passados desde então, mas tendo vivenciado um processo criativo intenso antes de nos deixar e eu e o José Guilherme Jordão vimos a nossa «troika» por gente formada, evidentemente, a ficar reduzida quase no começo do nosso caminho e ele deu então início a uma missão especial, com anos de trabalho intenso, com outras pessoas como ele, a ajudar a construir o notável mundo dos cuidados primários de saúde que nós temos e de cuja existência eu fui, e sou, testemunha privilegiada e um dia, já lá vão dez anos, nunca entendi porquê, ele partiu, deixando saudades a todos os que o conheceram e desde então eu fiquei só, nessa «troika» por gente formada, com a tarefa de transmitir a grandeza desses compagons de route tão precocemente afastados e, ainda, e para lhes dizer aos dois, quando eu lá chegar, que o mundo que deixaram mudou muito e que a universidade que eles conheceram se desdobrou e multiplicou em outras e outras mais outras como as da terceira idade e ainda noutras, com tons rosa e laranja, que só existem durante alguns dias de agosto e por isso lhes chamam as universidades de verão mas que devem ser excelentes porque, sem aulas e sem saberes, sem experiências e sem cultura, formam os jovens que se distinguem nos governos e nas oposições e ainda outras coisas que tenho vindo a apontar para lhes contar, quando estivermos juntos, como a de dizer ao José Guilherme Jordão que agora tem um sobrinho com o seu nome (a quem chamamos Zé Gui) e que dá muitos ares ao tio e vou dizer ao Mário Botas que, também em sua homenagem, sou agora aluno de belas-artes e que quando quero «escandalizar» os meus professores lhes digo que o Mário foi meu aluno (na anatomia, claro, mas isso só digo no fim) e termino lamentando que o mundo, as suas famílias e os seus amigos não tenham desfrutado mais com as suas inteligências, as suas artes, os seus convivios e os seus amores e como o tempo já vai longo digo aos dois em meu nome, e no dos que me estão a ler, um consciente ATÉ JÁ. Nota Este texto é também publicado em formato digital no site: http://www.casaldasletras.com |