EditorialRastreio do cancro da mama – é altura de começarmos a pensar nas desvantagens
Daniel Pinto* A possibilidade de vir a ter um cancro é algo que assusta qualquer um de nós e, se alguém nos disser que o poderemos evitar, poucos deixarão passar a oportunidade. Os rastreios oncológicos são algo que intuitivamente faz sentido: se encontrarmos um cancro mais cedo será mais fácil tratá-lo e o prognóstico será melhor. Porém, raramente nos são comunicados os potenciais riscos associados a estes rastreios, sendo que a maioria da comunicação dirigida a médicos e à população é focada exclusivamente nos potenciais benefícios.(1) Entender as vantagens e desvantagens dos rastreios não é tarefa fácil, mesmo para os médicos. Um estudo recente pediu a médicos de cuidados primários nos Estados Unidos para decidirem recomendar ou não aplicar um rastreio oncológico com base em cenários hipotéticos, concluindo que a maior parte dos médicos não era capaz de interpretar os resultados dos testes de rastreio que aplicam na prática clínica.(2) Os programas de rastreio populacional do cancro da mama começaram a ser implementados na maioria dos países desenvolvidos nos anos 80, com o objetivo de reduzir a mortalidade por este cancro e prolongar a vida das mulheres.(3) No entanto, várias avaliações recentes do impacto desses programas não mostraram os benefícios anunciados. A colaboração Cochrane reviu a literatura sobre o rastreio do cancro da mama e concluiu que por cada 2000 mulheres rastreadas durante 10 anos apenas uma beneficiaria do rasteio.(4) No entanto, encontrou também desvantagens do rastreio e insuficiências importantes na literatura. Depois de publicada esta revisão surgiram novos estudos importantes. Uma investigação norueguesa concluiu que a redução de mortalidade por cancro da mama observada no país entre 1996 e 2005 se devia sobretudo à melhoria da eficácia dos tratamentos e apenas em um terço ao rasteio.(5) Na Suécia, o rastreio teve um impacto pequeno ou nulo na mortalidade por cancro da mama.(6) Na Holanda, no Reino Unido e nos Estados Unidos não foi encontrada a redução esperada da proporção de cancros da mama em fase avançada após a implementação dos programas de rasteio.(7,8,9) O que se está a passar? Para que o rastreio do cancro da mama seja bem sucedido deve permitir-nos encontrar o cancro numa fase mais precoce da história natural da doença e o tratamento nesta fase mais precoce deve ser mais eficaz do que se esperássemos que o cancro fosse identificado quando se torna sintomático.(8) O que os estudos acima referidos verificam, porém, é que apesar de estarem a ser identificados mais cancros da mama em fases precoces, não se observa a esperada redução de cancros em fase avançada. Isto pode acontecer por dois motivos: existir um aumento da incidência de cancro da mama, que faz com que o número total de cancros seja maior, ou estarem a ser identificados cancros em fase precoce que nunca se iriam manifestar ou causar doença – sobrediagnóstico. Os dados sobre cancro da mama em mulheres jovens mostram que a sua incidência tem permanecido estável, o que indica que a justificação estará no sobrediagnóstico.(8) Este conceito de sobrediagnóstico não deve ser confundido com resultados falso positivos. Estamos perante um falso positivo quando uma mulher faz uma mamografia e o resultado indica a presença de cancro, mas depois essa não se confirma na biópsia, enquanto no sobrediagnóstico o resultado da biópsia mostra células neoclássicas.(10) Apesar dos mecanismos biológicos não serem ainda claros, os dados epidemiológicos sugerem que muitos destes conjuntos de células neoplásicas nunca iriam causar doença clinicamente aparente, o que chamamos cancro. Esta é uma conclusão que vai contra o que a generalidade dos médicos e a população acredita acerca do cancro (que é sempre agressivo e fatal), o que dificulta a sua aceitação. A existência de sobrediagnóstico faz com que as mulheres a quem é diagnosticado cancro da mama por rastreio tenham aparentemente melhor sobrevivência. Isto acontece porque uma parte destas mulheres nunca esteve em risco de morrer por cancro da mama. Apesar de não colher benefícios, este grupo recebe tratamento que implica frequentemente mastectomia total ou tumorectomia, quimioterapia, radioterapia ou hormonoterapia. Assim, ao contrário do que anunciam os programas de rastreio, o risco de mastectomia é maior nas mulheres rastreadas do que nas não rasteadas.(9) Para além disso, existe alguma evidência que o tratamento com radioterapia ou quimioterapia a que muitas destas mulheres são sujeitas associa-se por si só a maior mortalidade a longo prazo.(11,12) As melhores estimativas atuais apontam para que por cada mulher que beneficia do rastreio do cancro da mama entre três e dez outras vão ser tratadas por um cancro que nunca se manifestaria.(4,9,13) É altura de começarmos a ter uma discussão equilibrada com as mulheres a quem propomos o rastreio do cancro da mama, esclarecendo as suas potenciais vantagens, mas também as desvantagens. Referências bibliográficas 1. Gøtzsche P. Mammography screening – truth, lies and controversy. London: Radcliffe Publishing; 2012. Chapter 19, What have women been told?; p245-78. 2. Wegwarth O, Schwartz LM, Woloshin S, Gaissmaier W, Gigerenzer G. Do physicians understand cancer screening statistics? A national survey of primary care physicians in the United States. Ann Intern Med. 2012 Mar 6;156(5):340-9. 3. Forrest P (Chair). Breast Cancer Screening – Report to the Health Ministers of England, Wales, Scotland and Northern Ireland. London: Her Majesty’s Stationary Office; 1986. Disponível em: http://www.cancerscreening.nhs.uk/breastscreen/publications/forrest-report.pdf [acedido a 20/02/2013]. 4. Gøtzsche PC, Nielsen M. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database Syst Rev. 2011 Jan 19;(1):CD001877. 5. Kalager M, Zelen M, Langmark F, Adami HO. Effect of screening mammography on breast-cancer mortality in Norway. N Engl J Med. 2010 Sep 23;363(13):1203-10. 6. Autier P, Koechlin A, Smans M, Vatten L, Boniol M. Mammography screening and breast cancer mortality in Sweden. J Natl Cancer Inst. 2012 Jul 18;104(14):1080-93 7. Nederend J, Duijm LE, Voogd AC, Groenewoud JH, Jansen FH, Louwman MW. Trends in incidence and detection of advanced breast cancer at biennial screening mammography in The Netherlands: a population based study. Breast Cancer Res. 2012 Jan 9;14(1):R10. 8. Autier P, Boniol M. The incidence of advanced breast cancer in the West Midlands, United Kingdom. Eur J Cancer Prev. 2012 May;21(3):217-21. 9. Bleyer A, Welch HG. Effect of three decades of screening mammography on breast-cancer incidence. N Engl J Med. 2012 Nov 22;367(21):1998-2005. 10. Gøtzsche P. Mammography screening – truth, lies and controversy. London: Radcliffe Publishing; 2012. Chapter 16, Overdiagnosis and overtreatment; p185-219. 11. Darby SC, McGale P, Taylor CW, Peto R. Long-term mortality from heart disease and lung cancer after radiotherapy for early breast cancer: prospective cohort study of about 300,000 women in US SEER cancer registries. Lancet Oncol. 2005 Aug;6(8):557-65. 12. Roychoudhuri R, Robinson D, Putcha V, Cuzick J, Darby S, Møller H. Increased cardiovascular mortality more than fifteen years after radiotherapy for breast cancer: a population-based study. BMC Cancer. 2007 Jan 15;7:9. 13. Independent UK Panel on Breast Cancer Screening. The benefits and harms of breast cancer screening: an independent review. Lancet. 2012 Nov 17;380(9855):1778-86. * Departamento de Medicina Geral e Familiar – Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa [email protected] |