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EditorialMaio-Junho 2020 | Volume 49 — Número 3
O tabaco e as suas duas epidemias
Mário Bernardo* Muitas instituições dedicadas à prevenção das doenças cardiovasculares, em Portugal e no mundo, ocupam-se em divulgar informação, para o público e para os profissionais de saúde, durante o mês de Maio, que é tradicionalmente considerado o Mês do Coração. Mais uma vez, a actual edição da Postgraduate Medicine respeita essa regra, publicando artigos sobre o estado da arte em várias das faces do Inimigo Público Número Um desta patologia, o tabaco. O facto da actual pandemia por Covid-19 continuar presente em todas as publicações científicas obriga, igualmente, a que se lhe preste uma especial e permanente atenção. Além disso, a extraordinária resposta para o controlo da epidemia, realizada pelas instituições da saúde que tratam as pessoas infectadas, não pode deixar sem a adequada assistência os doentes com outras patologias, nomeadamente as cardiovasculares. Nasci a meio da segunda guerra mundial, depois cresci e fui enviado para outra guerra na metade de baixo do planeta(1); agora, nestes últimos tempos da minha vida no lado de fora do mundo, eis-me a viver numa outra situação de quase-guerra em que os humanos, apesar de grandes, como Golias, andam cercados (ou confinados, como agora se diz) por um exército de Davides, esverdeados e com o corpo coberto de espinhos, como o ouriço, e que sendo embora pequeninos, pequeninos, e tal com muitos humanos, também não sabem dançar.(2) E como se isto não bastasse ainda é necessário esclarecer que os vários períodos de paz, entre estas guerras, foram sempre recheados por pequenas batalhas, recorrentes e recidivantes, com vitórias e derrotas esbatidas e provisórias. Será que a verdadeira paz em vida é uma miragem e só se atinge no RIP final? A forma do cigarro, e ele é o representante por excelência do tabaco, é a mesma do cano de uma arma de fogo e, sendo por isso ou por outra qualquer razão, ele é o vilão que mata, no mundo, cerca de oito milhões de pessoas por ano. E, curiosamente, muito antes que Estocolmo desse o nome ao seu tristemente célebre síndroma, já as vítimas desta epidemia, a do tabaco, tinham o agressor como o amor das suas vidas. Vilão nessa epidemia, o tabaco aparece agora, pretensamente travestido de herói, na pandemia do Covid-19. Tudo isto porque o Director de um Serviço de Medicina Interna de um famoso hospital de Paris publicou um trabalho explicitando que, nos doentes Covid-19 aí internados, a percentagem de fumadores era mais baixa do que a existente na população nacional. Logo em seguida, juntou mais números de doentes em diversos hospitais chineses onde essa diferença era igualmente notória. E até o próprio Ministro da Saúde de França se referiu ao achado e prometeu investigação complementar. Os primeiros estudos publicados foram recebidos com natural desconfiança. E, posteriormente, têm aparecido muitas críticas à metodologia utilizada pelos investigadores, principalmente na caracterização epidemiológica(3) da população em causa (um dos trabalhos citados só considerava “fumadores” os indivíduos que fumavam mais de 30 maços de cigarros por ano) e na possibilidade de os doentes negarem, tanto quanto possível, o seu tabagismo por recearem ser excluídos do tratamento com ventiladores. De toda a acção do tabaco no indivíduo, para evidenciar o seu papel “protector” só foi considerada a nicotina, que seria a responsável pela diminuição quantitativa de ACE2 (enzima de conversão da angiotensina 2) que é um dos receptores por onde o SARS-CoV-2 entra nas células. Este dado continua por provar. Curiosamente, nos trabalhos citados nunca foi colocada a hipótese de a alta temperatura do ar inspirado no acto de fumar poder ter acção destruidora de vírus na naso-faringe nem nunca se concluiu que esta era a grande oportunidade para os fumadores deixarem de fumar com a ajuda dos pensos de nicotina. Para concluir, e de acordo com os actuais conhecimentos, numerosos estudos demonstram, inequivocamente, que os fumadores que se infectam com o Covid-19 têm um risco aumentado de desenvolver formas graves da doença. Nesses trabalhos tem-se igualmente verificado que a proporção de fumadores é duas a quatro vezes maior no conjunto dos doentes mais gravemente atingidos. Para além disto, tudo o mais é fumo sem fogo. *Médico Artista plástico Referências bibliográficas 1. Guerra colonial, Moçambique 2. Homem (ou vírus) pequenino ou pirata ou dançarino 3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7202479/ |